A distinção como base para a desumanização.
AVISO: o texto abaixo contém Spoilers.
Ele Está de Volta é um filme com tons satíricos e fantásticos, porém bastante crítico e que se refere simbolicamente à realidade atual. Tem como roteiro o súbito aparecimento de Adolf Hitler na Alemanha contemporânea.
Certo dia, Hitler abre os olhos e se vê deitado diante do local onde havia sido construído o bunker no qual teria se escondido ao final da segunda guerra mundial. Parece atordoado diante do estranho cenário e se mostra com dificuldades de compreender o que está se passando. Depara-se com pessoas e as interroga sobre os rumos da guerra. Cenas engraçadas acontecem conforme os transeuntes assumem que ele é algum sósia de Adolf Hitler e este tenta assimilar as transformações pelas quais o mundo passou desde 1945.
O filme se desenrola neste clima de sátira – uma vez que as peculiaridades de Hitler são expostas e ridicularizadas conforme se chocam com as novas dinâmicas sociais – até que o personagem se depara com um repórter freelancer que está em busca de uma matéria capaz de melhorar sua carreira em decadência.
A dupla segue em viagem pelo país para entrevistar pessoas e colher suas visões sobre acontecimentos sociais atuais e suas posições ideológicas, incluindo a compatibilidade delas com os discursos de Hitler. Começam, então, a aparecer manifestações racistas, críticas à imigração, afirmações da superioridade de raças, entre outras. Para o repórter, esse parecia um excelente material para vender a alguma emissora de TV. Para Hitler, se transformaria na oportunidade de, novamente, tornar públicas suas ideias e de propagar seu discurso – vale lembrar quão empenhada foi sua atuação em publicidade e propaganda na segunda guerra mundial para justificar o ódio que culminou nas conhecidas atrocidades contra a humanidade.
Muitos são os temas que podem ser extraídos do filme, mas selecionamos a questão da distinção que a sociedade tem insistido em fazer entre os diversos grupos que a compõem. Ao se estabelecer arbitrariamente parâmetros que definem limites, automaticamente se está determinando quem pertence ou não a cada grupo. A diferenciação, por si só, não é um problema, levando em consideração que somos todos diferentes em algum aspecto. O problema está nos propósitos que motivam tais segmentações. Frequentemente têm servido para definir quem tem acesso e quem não tem; quem deve ser reconhecido ou ignorado; quem tem direitos e quem não deve ser considerado cidadão; quem é normal e quem é desviado, doente, mau, entre outros.
Psicologicamente, segregações como estas geram uma consequência terrível: a de atribuir àquele de “fora” menor valia, pois cada grupo ou indivíduo tende a tomar suas próprias referências como válidas e a desconsiderar ou depreciar os valores, as culturas e os princípios dos demais. Estabelece-se uma hierarquia que aparta o outro da condição de igualdade, tornando-o menos “humano” quanto maiores, mais abrangentes e mais ameaçadoras forem as diferenciações. Quanto menos humanos são considerados os integrantes de dado grupo, maiores as chances de sofrerem violência – serem atacados fisicamente, ofendidos, terem seus direitos negados, enfim, serem dominados sem que seus algozes se sintam moralmente inadequados.
Vale lembrar que, em muitos casos, as distinções estiveram tão impregnadas nas dinâmicas sociais que foram erroneamente tomadas como naturais enquanto deveriam ser entendidas como construções sociais que representavam apenas os interesses de parcelas da população, como o acúmulo de poder, riquezas, entre outros. Por exemplo, a ideia de que os afrodescendentes eram menos desenvolvidos foi muito disseminada, inclusive no meio acadêmico por meio de estudos pretensamente científicos, o que legitimou a escravidão e, ainda hoje, estimula o racismo. Também os indígenas foram entendidos como povos primitivos, o que pretendeu justificar toda a violência e a usurpação de terras por parte dos colonizadores – entre os argumentos, estava a absurda alegação de que a dominação tornaria os nativos civilizados e aculturados e, portanto, ser-lhes-ia benéfica; para informação, os povos indígenas são, hoje, os que mais cometem suicídio no Brasil.
Assim, homens continuam se entendendo possuidores de suas mulheres e agridem suas “propriedades” conforme ainda prevalece o ditado “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher”; os mais ricos constroem muros para afastar a suposta ameaça dos mais pobres, tidos indevidamente como mais predispostos ao crime; enfim, nacionalidade, religião, partido político, profissão, orientação sexual, tudo pode se tornar motivo para a distinção e a consequente desumanização. Curiosamente, no filme, o próprio Hitler é agredido por neonazistas ao ser considerado um “problema” para estes.
O filme acerta ao deixar claro que os horrores da segunda guerra mundial não foram causados apenas pelas loucuras de um homem e tampouco tiveram suas causas deixadas no passado. Os clamores de uma parcela significativa da população para a retomada de regimes ditatoriais é a maior prova. Dentro de cada um que se se olha no espelho e se enxerga especial, superior, distinto e, por isso, mais merecedor, existe um Hitler sendo germinado em soberba.
Escrito pela psicóloga clínica especialista em psicanálise Fernanda Guimarães e pelo especialista em sociologia e em educação Roberto Guimarães.

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