A Ponte (The Bridge) - Resenha do Livro Além da Sinopse

As causas sociais do suicídio. 

AVISO: O TEXTO ABAIXO CONTEM SPOILERS. 

A Ponte é um documentário que registra alguns suicídios na ponte Golden Gate, assim como pesquisa as histórias dos suicidas e os impactos causados na vida de familiares e amigos. São casos chocantes e que requerem equilíbrio emocional para serem “digeridos” pelo espectador, portanto, sugerimos que pessoas fragilizadas emocionalmente não assistam ao documentário.

O suicídio ainda é tratado por boa parte da população como tabu, um ato incompreensível por atentar contra aquilo que é comumente entendido como o bem maior: a própria vida. Dessa forma, pouco se fala sobre o assunto, o que permite o surgimento de máximas tão errôneas quanto prejudiciais para quem já se encontra no limite, tais como “quem quer se suicidar não avisa” ou “quem quer realmente se matar, não tenta, consegue”, esta relativa às tentativas fracassadas.

É necessário entender que ninguém deseja realmente morrer quando há saídas para as cargas e dores com as quais a realidade nos presenteia, afinal, nossos organismos são estruturados com sistemas de regulação para a sobrevivência e adaptação às circunstâncias visando a autopreservação. Quando, então, o indivíduo anuncia, conforme relatado no documentário, suas intenções de se matar ou indica que preferia estar morto, mesmo em tom de brincadeira, está sinalizando a escassez de seus recursos para suportar as pressões que lhe afligem. É um pedido de ajuda. 

Como se pode imaginar, atentar contra a própria vida não é fácil. É preciso muita coragem para abrir mão de tudo! Portanto, o suicida potencial frequentemente realiza inúmeras tentativas antes de concretizar sua morte, como se cada uma fosse um passo em direção ao impensável ato de colocar fim à existência, uma forma de se familiarizar com sua extinção. Portanto, uma tentativa fracassada não tem somente o intuito de “chamar a atenção”, como fazem parecer alguns leigos, mas de tornar a morte mais palpável para alguns. 

Assim, se em vez de acolher e auxiliar o ouvinte ignora ou desdenha, ele dá um empurrão em direção ao abismo. A pouca credibilidade que é atribuída aos avisos ou às tentativas que não se concretizam pode reforçar a inclinação suicida por indicar a indiferença do outro em relação ao sofrimento e por aumentar a percepção de impotência. Há casos em que o indivíduo é tão desacreditado e ou negligenciado que se mata como forma de se provar capaz.  

Enquanto a população comum tende a se afastar do assunto, os estudiosos, por outro lado, vêm tentando, ao longo da história, identificar as causas prováveis para ações tão extremas. Já se atribuiu ao suicídio raiz genética, esta incapaz, porém, de decifrar o fenômeno de maneira ampla. Tentou-se, também, explica-lo por meio de desvios no funcionamento do psiquismo, como os estados de “loucura” adquiridos ou não, mas ainda sem a possibilidade de generalização. 

Em 1897, Durkheim publicou um estudo sobre o suicídio por um enfoque social . O que ele demonstrou é impressionante: o número de suicídios em dada região ou Estado tende a permanecer constante anualmente desde que nenhuma alteração social significativa seja constatada, tais como guerras e crises econômicas. Isso sugere que cada sociedade estabelece relações que tendem a se manter e que criam dinâmicas que favorecem o suicídio, como um organismo que possui um sistema de eliminação daquilo que lhe é excedente.

Dividiu os suicídios em três categorias. O suicídio egoísta, que está relacionado à escassa ou à nula vinculação do indivíduo aos meios sociais e que possibilita a constituição da identidade quase exclusivamente centrada no indivíduo, gerando dificuldades em contextualizar a existência e lhe atribuir valor. São exemplos casos em que o indivíduo vive isolado ou não consegue estabelecer relacionamentos que lhe sejam significativos – confunde algumas pessoas o fato de que muitos suicidas nesta categoria são sociáveis e possuem ampla rede de contatos, o que indica que tais interações por mais significativas que parecessem aos olhos de terceiros ou não o eram para o próprio indivíduo ou não eram suficientes para lhe amenizar o peso da existência. 

O suicídio altruísta, que se refere à submissão profunda do ser aos meios sociais com os quais interage de forma que a identidade seja constituída prioritariamente em função de tais instituições, o que facilita a disposição de sua vida em nome de propósitos outros ou em casos de perturbações na sua relação com tais instituições. Aqui podemos mencionar os militares submetidos ao rigor que anula a individualidade e os religiosos extremos, que se enxergam desprezíveis em relação ao divino. 

Por fim, o suicídio anômico, que resulta da falta ou da fragilidade de normas e conceitos que possam servir de referência para o indivíduo conduzir sua vida, o que se verifica, por exemplo, quando há alterações significativas no meio social ao ponto de tornar a existência uma incógnita e aterrorizar pela insegurança sobre os caminhos e as formas de fazer “corretas”. Não percebemos quantas ações realizamos com base em parâmetros claros capazes de nos trazer conforto e tranquilidade: escovamos os dentes após as refeições, dormimos oito horas por dia, trabalhamos das 8 às 17 horas, pagamos contas que se repetem mês a mês, sabemos como saudar as pessoas com quem nos deparamos, acreditamos trabalhar em nome de algo, entre outras. Determinados eventos podem abalar profundamente nossa rotina e nos impor uma série de decisões sobre as quais talvez não tenhamos recursos para discernir ou concretizar, como a perda da função no trabalho, a redução ou o aumento abrupto das finanças – isso mesmo, quem ascende degraus aos pulos nas “classes” sociais também pode ver seus parâmetros obsoletos –, morte repentina de muitos membros da família por acidente, entre outros. 

Possivelmente, tantos jovens se suicidam atualmente – a segunda maior causa de morte entre jovens – por vivermos em uma sociedade que muda drasticamente, que se pauta em dinâmicas individualistas e violentas e que não possui instituições fortes capazes de propor finalidades e conduzir.

Entre outras curiosidades que reforçam o aspecto social do suicídio apontadas por Durkheim, está o fato de que os meios pelos quais o ato suicida se concretiza tendem a se manter proporcionais. Por exemplo, se dez por cento dos casos em dado momento e local são cometidos com armas de fogo, ao ter aumentada a taxa de suicídios, as ocorrências com armas de fogo permanecem em dez por cento ou seja, sobem proporcionalmente ao acréscimo de mortes. 

O fato do suicídio poder ser “lido” por aspectos sociais não significa que o indivíduo é impotente para reverter tais eventos. Pelo contrário: é na mudança do individualismo para o compartilhamento e o estabelecimento de projetos coletivos, na passagem da competição exacerbada para o equilíbrio com a cooperação e na tolerância à diversidade promovida pela aproximação empática que os resultados poderão ser alterados.

Escrito pela psicóloga clínica especialista em psicanálise Fernanda Guimarães e pelo especialista em sociologia e em educação Roberto Guimarães.

NOTA: Imagem retirada do Google Imagens.


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