Capitão Phillips (Captain Phillips) - Resenha do Livro Além da Sinopse



A indústria cultural e o reforço à ideologia dominante.

AVISO: O TEXTO ABAIXO CONTEM SPOILERS.

Baseado em uma história real, o filme Capitão Phillips narra um episódio incomum na vida de Richard Phillips, durante uma navegação que realizava com a embarcação da qual era o responsável. O objetivo de sua viagem era levar cargas do porto de Omã para Mombaça, no Quênia. Quando, porém, atingiu as proximidades da Somália, que enfrentava severas dificuldades políticas e econômicas, teve seu navio atacado por piratas. 

Como se pode facilmente prever, o capitão resistiu bravamente ao ataque e tentou defender ao máximo sua tripulação. A marinha foi envolvida nas tentativas de resgate e, ao final, Phillips se tornou o herói da história. 

No início do filme, a esposa do protagonista o leva ao porto para que possa embarcar em mais uma jornada de trabalho ao mar. Entre outros assuntos, inicia-se uma discussão sobre o futuro do filho e o desejo de Phillips de que “tome um rumo na vida”. O Capitão apresenta uma visão impregnada de senso comum, como a ideia de que sem diploma de um curso superior o indivíduo não é ninguém, por exemplo.

Discursos como esse povoam a imaginação das pessoas. O curioso é que muitas delas não têm ideia dos fatores que estimulam a adoção de tais “verdades”. A constituição de referenciais de sucesso, de propósitos de vida, de realização pessoal, de felicidade, entre muitos outros, não acontece de maneira independente do meio social. Os conceitos e valorizações realizados coletivamente permeiam a consciência de cada indivíduo e os submetem quanto menor for sua autonomia.

Como os acontecimentos têm mostrado, os regimes político-econômicos predominantes vêm estimulando desigualdades sociais que se refletem em distribuições extremamente desequilibradas de riquezas e poder, entre outras. Aqueles que se beneficiam tendem a reforçar a situação vigente e a defender mais enfaticamente suas dinâmicas. Assim, mesmo que, atualmente, possamos verificar maior descentralização das comunicações pela participação acentuada da população nas redes sociais virtuais, por exemplo, ainda prevalecem as produções culturais que reforçam o status atual, pois são mais facilmente realizadas e amplamente disseminadas por quem possui mais recursos.

Numa sociedade que visa o lucro, forma-se uma indústria que reduz a produtos as manifestações culturais e promove somente aqueles que vendem mais, o que limita significativamente a variedade. A música é um bom exemplo: enquanto um gênero musical está em alta, surge uma infinidade de artistas que produzem incessantemente – quanto mais similar melhor – até o momento em que a população desvia o olhar para outro gênero e faz sumir dos holofotes os músicos “obsoletos” para dar lugar a um novo enxame de artistas, em ciclos cada vez mais instáveis. O grande prejuízo aqui é o fato de que a qualidade do desenvolvimento do ser humano – emocional, intelectual, cognitivo – está diretamente ligada à riqueza e à complexidade de seu entorno social e ao acesso que tem às diversas expressões da cultura. 

Além de determinar o que chega ao grande público, a indústria cultural assume tanto a “missão” de reforçar os valores sociais que sustentam o regime dominante quanto a função de mascarar as injustiças de que se reveste por meio de discursos compensadores dos infortúnios. 

Vejamos um exemplo: o formato de trabalho especializado a que estamos habituados e que entendemos como normal é visto por muitos teóricos como alienante e, muitas vezes, injusto. Alienante por reduzir um ser complexo e capaz de realizar múltiplas funções a um emprego restritivo das potencialidades: ninguém é somente engenheiro ou advogado. Em boa parte dos casos, injusto por não recompensar senão financeiramente – muitos trabalhadores não possuem a oportunidade de ver materializado o produto final de seus esforços, o que dificulta a constituição de orgulho pelo empenho aplicado e o desenvolvimento do sentimento de protagonismo – ou por beneficiar mais indivíduos que sequer participam do processo produtivo em relação a quem efetivamente entrega ali seu suor.

Para evitar a constatação de tais características por parte da população, a indústria cultural entretém e cria fantasias sobre a realidade do trabalho, tal que o operário se motive a levantar cedo no dia seguinte para mais uma jornada em vez de declarar guerra à “exploração”. No filme, o capitão Phillips, um funcionário ordinário de quem seu empregador sequer devia ter conhecimento, tem um destino diferente daquele reservado à maioria da população. Sai do anonimato, torna-se grande. Mas essa fortuna não lhe foi de encontro por que se rebelou, mas porque se submeteu. O filme nos sugere que, justamente por seguir o “roteiro”, conselho que gostaria de direcionar ao próprio filho, o digno personagem tem reconhecida sua honradez, permitindo ao espectador assumir que sorte semelhante está reservada a quem fizer o mesmo. 

Do outro lado da balança, os somalis passam facilmente por criminosos frios e impiedosos por atacarem o coração do sistema capitalista, o escoamento de mercadorias. São classificados como as ameaças ao regime, mesmo que, de fato, estejam entre suas maiores vítimas, relegados a viver em condições sub-humanas. Por partirem do ponto de vista de quem detém o poder, os valores morais disseminados em produções como essa, sem que se perceba, são indiscriminadamente invertidos.  

Com isso não queremos dizer que tais ações são todas planejadas e intencionais, como se houvesse um grupo de vilões sentados em uma sala escura elaborando suas dominações. Infelizmente não é tão simples assim. Todos aqueles incapazes de analisar criticamente a realidade e de retirar o véu que sustenta a ilusão são corresponsáveis pela disseminação e manutenção das engrenagens que regem nossas injustas relações.  

Escrito pela psicóloga clínica especialista em psicanálise Fernanda Guimarães e pelo especialista em sociologia e em educação Roberto Guimarães.

NOTA: Imagem retirada do Google Imagens.

Comentários