A ineficiência do sistema carcerário.
AVISO: O TEXTO ABAIXO CONTEM SPOILERS.
O filme Carandiru se baseia no triste episódio da rebelião no presídio de mesmo nome ocorrido em 1992 que terminou num massacre de detentos após a intervenção da polícia. A história é narrada pelo ponto de vista de alguns prisioneiros, cujas vidas são apresentadas ao espectador, tanto antes de serem presos quanto durante o encarceramento, talvez numa tentativa de humaniza-los.
É interessante verificar como, facilmente, enxerga-se o indivíduo que cometeu algum crime como um doente, às vezes pertencente a uma espécie distinta, não-humana. Não é raro as pessoas se surpreenderem quando verificam que alguns dos criminosos mais cruéis possuem feições “normais”, como nos casos de assassinos seriais que se tornaram conhecidos pelo seu charme e carisma. Tal estranhamento se dá pelo fato de imaginarmos que atos monstruosos devem refletir características monstruosas visíveis.
Não queremos neste artigo defender os detentos ou o Estado. Infelizmente a discussão em torno do episódio se tornou polarizada, numa tentativa de culpar a polícia ou os presos pelas consequências da rebelião. Isso não somente aumenta o sofrimento da população como desvia o olhar das reais raízes do problema, entre elas a desigualdade social, a fragilidade da educação, e, principalmente, o fracasso da segurança pública que se constitui também da ineficiência do sistema prisional.
É comprovado que o argumento de que a prisão possui a finalidade de reintegrar o indivíduo à sociedade é equivocado, pois as estatísticas demonstram que setenta por cento dos condenados reincide no crime após sua soltura. Alguns tentam justificar tais dados pela alegação errônea de que o criminoso é irrecuperável – o próprio termo “criminoso” já fixa o indivíduo à condição de violador. O que explicaria, então, a existência de uma prisão que recebe condenados por crimes dos mais violentos com índices de reincidência menores do que dez por cento?
Historicamente, muitas justificativas foram elaboradas por diversas instituições para legitimar o encarceramento como a maneira adequada de promover, além de punição, a reintegração. Um dos mais risíveis partia da premissa de que o indivíduo poderia, em seu isolamento e por exames de consciência, encontrar dentro de si os elementos da boa moral e, a partir daí, conduzir-se de maneira adequada. Fazia parecer que todos conhecem e valorizam a boa conduta – aqui definida como a que está de acordo com as determinações morais e legais vigentes em dada época e local – e que o ato criminoso é resultado de uma decisão mal pensada, apenas. Sendo assim, qualquer reflexão levaria o indivíduo ao arrependimento e o recuperaria dos impulsos maléficos a que foi submetido.
O aspecto mais contraditório da prisão como solução para a reintegração – são tantos que é difícil escolher um só – está no fato de que alguém somente pode se integrar realmente a um grupo social quando participa de suas dinâmicas, o que não é possível no isolamento. Para que alguém se motive a se adequar às regras – lembramos que regras são limitações à liberdade e, por isso, são contra instintivas –, deve ser capaz de se sentir parte do grupo e entender – não somente racionalmente, mas afetivamente – que o pertencimento o beneficia. Como isso pode ser atingido quando o indivíduo se percebe vítima de injustiças sociais, corrupções governamentais, entre outros? A rejeição do ex-presidiário pela população que o rotula, mesmo quando já “pagou sua pena”, contribui para que a integração nunca aconteça de fato, afinal, para ser parte da sociedade não basta compartilhar os mesmos espaços. Não pretendemos, com isso, simplificar a história e dizer que é fácil aceitar e conviver com alguém que já cometeu atos que tememos – é difícil esperar que alguém deixe seus filhos aos cuidados de um indivíduo que tem em seu histórico o abuso sexual de crianças, por exemplo. Apenas queremos salientar que a dificuldade em acreditar no desenvolvimento moral de alguém causa desconfiança e rejeição, reduzindo ou anulando as chances de integração.
Voltando à pergunta sobre o sucesso que a instituição prisional citada anteriormente consegue obter, verifica-se que o diretor da instituição é um ex-presidiário que consegue, pela empatia desenvolvida na identificação, realizar um regime disciplinar humanizante. Em vez de restringir as potencialidades individuais numa disciplina militarizada – e que aumenta as chances de revolta por seu caráter limitador –, ele as estimula. Promove atividades que preparam o indivíduo para as dinâmicas de trabalho, entre outras, o que facilita não somente a reintegração operacional, prática, mas a percepção de que pode ser parte ativa da sociedade. Possibilita ao detento constituir orgulho ao trata-lo como gente e, com isso, entrega a mensagem de que o Estado o considera e não é o inimigo a quem se deve atacar.
O simples encarceramento não resolve, mas a qualidade das relações sociais nas quais o indivíduo se vê inserido. Se o sistema prisional ainda prevalece não é por falta de informação dos responsáveis sobre sua ineficácia. A prisão tem sido bastante lucrativa em países nos quais o sistema carcerário foi privatizado e se tornou negócio que obriga o Estado a preencher determinado percentual de vagas – ou seja, a fabricar criminosos. No Brasil, como a opinião pública engatinha e se prende aos aspectos superficiais de problemas complexos, a ideia de ter o condenado afastado da sociedade, mesmo que enjaulado em condições lamentáveis, parece agradar, pois a paz imediata por ter o criminoso longe da vista é tão reconfortante que impede de raciocinar sobre os futuros riscos de reincidência ao crime. Enquanto essa solução for suficiente para acalmar os ânimos da população, os governantes não terão por que se ocupar com saídas mais eficientes, e outros tantos “Carandirus” continuarão acontecendo.
Escrito pela psicóloga clínica especialista em psicanálise Fernanda Guimarães e pelo especialista em sociologia e em educação Roberto Guimarães.
NOTA: Imagem retirada do Google Imagens.

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